Não é exagero dizer que, nos séculos 17 e 18, Santa Cruz da Barra era para nós mais ou menos como Alcatraz foi para os americanos no século 20: de acesso difícil, quase impossibilitava as fugas. Suas celas foram construídas para a custódia de presos militares, como parte integrante do regulamento disciplinar das Forças Armadas. “Entretanto, ao que consta, a fortificação chegou a abrigar presos comuns. Foi utilizada para a custódia de militares insubordinados e rebeldes, bem como de presos políticos, notadamente durante os períodos imperial e republicano”, diz Ornellas. Muito além de servir de cárcere, porém, a construção era uma das principais fortificações do Rio de Janeiro. Por causa dela, durante séculos a cidade esteve livre de diversos invasores, principalmente franceses e holandeses.
Situada na extremidade da margem oriental da baía de Guanabara, numa península rochosa à entrada da barra e em frente ao complexo de fortificações de São João, Santa Cruz da Barra demarcava o canal de entrada dos navios de maior porte. “Ela era bastante segura, quase inexpugnável, como diziam os engenheiros militares do século 18”, diz o historiador César Ornellas, coordenador do curso de História do Centro Universitário La Salle. “Desde a sua construção, no século 16, até o início da década de 1940, não havia estrada de acesso à fortaleza. O acesso costumeiro era feito por via marítima, com desembarque na parte abrigada das ondas. Mar violento, fortes correntezas, isolamento por terra, forte esquema de segurança e a tradição de repressão aos revoltosos dificultavam as tentativas de fuga. Tanto que essa, de La Salle, foi a única até o século 20.”
A fortaleza começou a ser construída em 1555 – e, por mais irônico que pareça, justamente por ordem de um francês. Nicolau Durand de Villegaignon chegara ao país naquele ano com a intenção de fundar uma colônia, a França Antártica. Os portugueses acabaram expulsando os franceses do local em 1567 e herdaram, além da construção de Santa Cruz da Barra, a fortaleza de Villegaignon, na mesma baía de Guanabara. Foi durante a campanha para expulsar os invasores que o militar português Estácio de Sá fundou, em 1º de março de 1565, entre o morro Cara de Cão e o Pão de Açúcar, no local onde foi erguida a fortaleza de São João, São Sebastião do Rio de Janeiro. Cidade que, como se vê, tem no passado a presença importante não apenas de portugueses, índios e negros, mas também de franceses, holandeses e piratas, com suas pilhagens e aventuras dignas de cinema e literatura.
Santa Cruz da Barra passou a fazer parte do sistema de defesa da baía de Guanabara. Sofreu ampliações em meados do século 17 e entre 1768 e 1769, além de acréscimos entre 1862 – época da Questão Christie, de rompimento de relações diplomáticas do Brasil com a Grã-Bretanha – e 1870, quando houve a finalização de seus dois andares de casamatas, os abrigos para estoque do material de abastecimento.
No século 18, chegou a contar com 44 canhões. Deles, saíam tiros se algum navio tentasse entrar à noite na barra. O porto só era aberto do nascer ao pôr-do-sol. “Se o navio quisesse entrar, era advertido por uma salva de canhões. Se insistisse, era alvejado”, diz César Ornellas. Nem todo esse esquema de segurança, porém, era capaz de acalmar a população do Rio de Janeiro, que se alarmava cada vez que via bandeiras holandesas ou francesas. Em 1695, por exemplo, o engenheiro francês François Froger passou pelo Rio de Janeiro e por Salvador em uma longa viagem, que resultou no livro Relation d’un Voyage Fait en 1695, 1696 e 1697 aux Côtes d’Afrique, Détroit de Magellan, Brésil, Cayenne et Isles Antilles (“Relato de uma viagem feita em 1695, 1696 e 1697 pelas costas da África, Estreito de Magalhães, Brasil, Caienas e Antilhas”, sem tradução em português). Ele conta que, ao avistarem os navios com bandeiras da França, os moradores do Rio mandaram suas mulheres, filhos e bens para o interior, temendo uma invasão seguida de saque. Não tinham motivo para tanto medo. Ao menos não daquela vez. Froger não era um corsário: estava em missão diplomática. Durante sua estadia, ele observou os hábitos da população e desenhou mapas detalhados da entrada da baía da Guanabara, com a localização de cada bateria ou fortaleza.
Foram esses mapas que deram subsídios para que, 15 anos depois, os temores da população se tornassem realidade. Em 1710, outro corsário francês, Jean-François Duclerc, à frente de uma frota de cinco navios e pouco mais de mil homens, tentou invadir a cidade pela entrada da barra. Impedido pelo fogo pesado especialmente da fortaleza de Santa Cruz, Duclerc aportou em Guaratiba, na baía de Sepetiba, e tentou invadir o Rio a pé. Acredita-se que aí tenha surgido a expressão “não adianta forçar a barra” – usada até hoje para caracterizar algo difícil de ser conseguido.
A luta entre franceses e portugueses deu-se em pleno centro da cidade. Duclerc acabou preso, com sua tripulação, e assassinado sob circunstâncias nunca esclarecidas na casa do tenente Tomás Gomes da Silva, que tinha sua custódia. Entre os homens do corsário estava o tenente La Salle – o mesmo que abre nossa matéria e que protagonizaria a fuga mais fantástica do Brasil colonial. Preso por participar do ataque, La Salle sabia que responderia por crime de lesa-majestade (traição ao rei ou a seu reino) e que só teria dois destinos em vista, caso não tentasse fugir: pena capital ou degredo perpétuo na África.
A Fortaleza não funciona mais como presídio. Na defesa da nossa costa, seu último disparo, de aviso, foi dado em 1955 contra o cruzador Tamandaré. Tombada pelo Patrimônio Histórico Nacional desde 1939, hoje pode ser visitada por turistas, que encontram mais de 40 peças de artilharia de diversos períodos, as masmorras, a capela de Santa Bárbara (construída no século 17), o relógio de sol (de 1820), o local de enforcamentos e o paredão de fuzilamentos, entre outros artefatos históricos. Além, claro, de uma vista belíssima.
Fonte: https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/historia-forte-santa-cruz-alcatraz-do-brasil.phtml